memórias, cabelos e outras coisas que se embaraçam: Kikotowa (2011), de Mariko Asabuki
No ímpeto da leitura do primeiro livro da Mariko Asabuki, em julho acabei lendo também seu segundo, o romance curto きことわ (Kikotowa), que apareceu na edição de setembro de 2010 da revista Shinchō e no ano seguinte editado como livro pela editora com o mesmo nome da revista. Após ser publicada nesta, a obra Kikotowa foi premiada com o prêmio literário Akutagawa, com o que o nome da autora se tornou mais amplamente conhecido no mundo da literatura japonesa contemporânea. Se isso possibilitou maior contato com outras personalidades já estabelecidas nesse mundo (inclusive com o Kenzaburō Ōe), também pode ter causado certo bloqueio criativo: apesar de ter publicado esses dois primeiros livros em anos seguidos, seu próximo livro, "Timeless", só apareceu em 2018. Mas esse intervalo pode não ter qualquer relação com o prêmio, e é melhor evitar especulações como essa enquanto ainda não li seus ensaios e entrevistas, em que talvez ela mesma comente algo a respeito.
Agora sobre Kikotowa. O título remete aos nomes das duas personagens principais, Kiko e Towako. O "ki" do nome da primeira é escrito como 貴, palavra que entendo como associada a algo tratado como nobre, de alto status, alguém que é visto como de classe superior e respeitado de tal forma. A palavra "towa", usada no nome Towako, por si significaria eternidade, permanência, mas aqui é grafada como 永遠, com sentido similar mas geralmente lida como "eien" (durante a leitura, acompanhava mentalmente as palavras e cada vez que aparecia o nome dessa personagem eu começava lendo como "eien" até ver o 子 "ko" e perceber que era o nome da personagem, e não a palavra "eternidade", "eternamente". Pensei nisso como um efeito de desfamiliarização, e me pergunto se leitoras nativas sentiriam o mesmo). As duas se conheceram quando meninas, e a última vez que se encontraram foi 25 anos antes, em 1984, quando Kiko tinha 8 anos e Towako 15. Naquele tempo, a mãe de Kiko tinha comprado uma casa de praia em Hayama, na província de Kanagawa, e a mãe de Towako foi contratada para tomar conta dessa casa. Parece haver uma questão de diferença de classe entre as duas famílias, de onde viria, talvez, o sentido do nome da Kiko, cujo pai é um médico e cuja mãe, além de ter comprado essa casa na praia para escapulir um pouco da própria casa, é retratada como bem mão aberta quanto ao dinheiro. Enquanto isso, a mãe de Towako é contratada para trabalhar para a família de Kiko e seu pai é relojoeiro, o que naturalmente tem relação com a eternidade do nome da protagonista, que 25 anos depois continua morando perto da região da casa da praia, enquanto Kiko anda por lugares caros de Tōkyō. Se há tal questão de classe por trás das relações entre as famílias das duas protagonistas, isso não parece se tornar uma parede que impeça a relação entre as meninas. Towako foi levada pela mãe algumas vezes à casa de praia da família de Kiko, com o que ficaram amigas apesar de outra parede, a diferença de idade. Assim a mãe de Kiko começou a convidar Towako a aparecer na casa quando elas fossem lá passar o verão (inclusive pagando para que Towako pudesse ir), e o livro começa com Towako sonhando ou rememorando um desses dias de sua adolescência. As duas continuaram se encontrando na casa de praia até que a mãe de Kiko acabou morrendo e a menina deixou de ir à casa em Hayama. No presente da narrativa, a mãe de Towako é informada pelo tio de Kiko que pretendem se desfazer da casa de praia em Hayama, mas como a mãe de Towako está com a perna machucada, sua filha é enviada em seu lugar para encontrar Kiko na casa de praia e ajudar a esvaziá-la. O centro da história é esse reencontro e as memórias e pensamentos que ele provoca nas duas personagens no presente, em que Kiko é uma mulher de 33 anos, solteira, e Towako está com 40 anos, casada e com uma filha.
Apesar da confusão que meu resumo possa causar por conta dos nomes, acho que basta para apontar que Kikotowa apresenta personagens mais definidos e uma história mais "concentrada" que o primeiro livro de Asabuki. Mas se no reencontro das personagens a história parece ter um centro, que até poderia ser visto como um motivo de suspense, esse acontecimento se desenrola sem qualquer tensão. O reencontro é surpreendentemente fácil e natural, as duas interagem como que de modo a demonstrar a ineficácia de uma outra parede que poderia haver ali: o tempo que separa as meninas de 8 e 15 anos das mulheres de 33 e 40. Elas conversam, naturalmente, sobre o tempo que passou, sobre mudanças na região da casa da praia, mas a maneira como conversam não parece muito diferente das conversas rememoradas de 25 anos antes. Agora, se há certa concretude na narrativa e nas personagens (pelo menos em comparação com o primeiro livro), o que fica em primeiro plano no livro são essas rememorações, bem como as reflexões das personagens, em especial de Towako, a respeito da natureza do tempo e da memória. Aqui vale mencionar que a história é narrada em terceira pessoa, mas a voz narrativa tem acesso aos pensamentos das duas personagens, que acompanha alternadamente. Esse aspecto narrativo seria outra parede transposta na obra, mas a esse respeito vejo no estilo da escrita um elemento que acaba causando estranhamento. Tal como no primeiro livro de Asabuki, a escrita aqui também é marcada pela peculiaridade na escolha de palavras e de grafias, só que independentemente das personagens. Quero dizer, essas peculiaridades da escrita aparecem tanto quando a voz narrativa está descrevendo algo "concreto" quanto quando relata os pensamentos seja de Kiko, seja de Towako (digo isso como uma suposição a partir da minha impressão geral de primeira leitura, para falar com mais certeza eu precisaria reler o livro com maior atenção quanto a esse ponto). As falas diretas das personagens, que são poucas, são grafadas e registradas com maior "naturalidade" que as partes narrativas-descritivas, com sua linguagem literária. A quem pertenceria, então, essa peculiaridade no uso da linguagem? Seria característica da visão de mundo, da percepção das duas personagens igualmente, apenas reproduzida pela voz narrativa? Ou seria característica dessa voz narrativa onisciente, que transita pelas consciências das personagens e as expressaria por meio de sua (da voz narrativa) própria linguagem? Fica aqui um problema de literatura que se ligaria diretamente às incertezas e inconcretudes do primeiro livro de Asabuki. Também seria possível pensar nisso a partir da questão da memória, suas reelaborações e relação com a linguagem. Esse ponto deixo em aberto por enquanto.
Há ainda outras paredes sobre a qual gostaria de falar antes de encerrar este texto que já ficou mais longo que esperava. Uma delas tem a ver com a questão da identidade. Se o "centro" da história, como acontecimento, seria o reencontro de Towako e Kiko, há um centro mais estranho, subjetivo, que marca as memórias de 25 anos antes mas também se manifesta no presente. Entre as lembranças daqueles dias de adolescência, Towako retorna algumas vezes a um dia em que estavam na praia (Kiko, sua mãe e seu tio, e Towako), começou a chover, e tiveram de correr para o carro. No banco traseiro brincavam juntas, entrelaçando os braços e pernas e até os cabelos, a ponto de já não dar pra saber qual mão, qual perna era de quem. Esse emaranhamento é também notado depois pelo tio de Kiko, que comenta um dia em que, na casa de praia, ele e a mãe de Kiko viram as meninas dormindo em dois futons, de costas uma para outra, mas seus cabelos estendidos no chão pareciam se fundir de uma maneira impossível, já que nenhuma das duas tinha cabelo longo a ponto de isso ser possível. Se esses acontecimentos são evocados na rememoração do passado, algo aparentemente sobrenatural ocorre na casa de praia no presente, enquanto Kiko e Towako, adultas, arrumam as coisas que ficaram na casa. As duas, uma estando no primeiro andar e a outra no segundo, em certo momento sentem que estão sendo puxadas para trás pelos cabelos, mas ao olhar para trás não vêem nada, apenas seus cabelos como que alongados em direção a uma escuridão. Essa situação estranha, narrada separadamente da perspectiva de cada uma das personagens (mas de modo que não impede de pensar que ocorre simultaneamente às duas), não dura muito e elas caem sentadas no chão, sem saber o que aconteceu, e depois prosseguem nos trabalhos. Esse embaraçamento dos cabelos, que une as duas personagens e parece ser um fator determinante para o modo como as duas se reencontram com naturalidade, é espelhado pela maneira como os nomes das duas são unidos no título da obra. Nele, até o nome, uma marca da identidade, que demarcaria os limites entre uma pessoa/personagem e outra, é diluído e misturado, embaraçando e ligando as duas.
Acho interessante ainda que no texto as personagens com nome são as duas protagonistas, suas mães, o tio de Kiko e a filha de Towako, enquanto nem os pais das duas nem o marido de Towako são nomeados (não citei os nomes dessas outras personagens por receio de o texto ficar mais confuso, mas talvez tivesse facilitado na verdade). É curioso que o tio de Kiko seja o único homem com nome na história, o que talvez se deva ao fato de ele ser o único que freqüenta a casa de praia 25 anos antes, enquanto os pais das meninas estariam, implicitamente, trabalhando. O tio é retratado como alguém que gostava de música, aparelhos de som, e xadrez, e o fato de nesse período de desencontro ele ter começado a trabalhar "normalmente", de terno, surpreende Towako (ponto que também funciona para enfatizar a passagem do tempo). Não é explicitada a idade que ele tinha em 1984, se ele seria como um hippie, ou antes um homem mais despreocupado (talvez sem necessidade de trabalhar, com sustento dos pais? Vale notar que em 1984 o Japão estava ainda no período da bolha econômica, que só viria a estourar alguns anos depois, o que talvez seja o motivo que levou o tio de Kiko a precisar trabalhar), mas por esses pontos ele se mostra como uma figura diferente dos outros homens, presos ao trabalho. Enquanto isso, as mulheres retratadas na história são nomeadas, mas a passagem no tempo é marcada pela sobreposição nas diferentes gerações: Towako lembra de sua mãe dizendo como ficou surpresa ao pentear os cabelos (novamente os cabelos) de sua própria mãe (a avó de Towako) e vê-los tão mais finos que antes, e a própria Towako percebeu a mesma mudança ocorrendo nos cabelos de sua mãe, e imagina sua filha experienciando a mesma coisa com seus cabelos. Esse emaranhamento, sobreposição de gerações, parece marcar uma repetição na experiência da passagem do tempo no ponto de vista das mulheres. Esse ponto requer uma análise mais cuidadosa, mas faz pensar, no contexto deste meu texto apressado, se o gênero, pelo menos como entrevisto nessas diferenças de experiência entre os personagens apresentados como mulheres e como homens, não permanece como a única parede não facilmente transposta no âmbito da narrativa. Por outro lado, a proximidade das duas mulheres protagonistas, representada pelo embaralhamento dos cabelos, com sua capacidade de superar paredes como as que indiquei ao longo do texto, poderia indicar a possibilidade de um outro caminho no qual o gênero não se manifeste como uma parede. No fim do texto as duas demonstram intenção de manter contato uma com a outra mesmo após a demolição da casa em Hayama, e o que ocorre depois, se chegam de fato a se encontrar mais vezes, é algo que fica em aberto. Talvez fosse possível ler essa intenção delas no sentido de uma relação homoafetiva, mas não senti nada na história indicando essa direção no caso de Towako e Kiko - o que pode ser uma falha de leitura minha ou manifestação da questão de orientação sexual no Japão como uma parede ainda mais difícil, a ponto de não ser percebida. Novamente, melhor evitar especulações sem estudo apropriado. Em todo caso, parece ser ao menos possível dizer que se o gênero permanece no texto como uma parede densa, a amizade entre as duas mulheres se mostra nele como uma forma de desestabilizar, ou pelo menos deslocar essa parede.
[Gostaria de concluir dizendo que fiquei surpreso com o quanto consegui escrever sobre essa obra, e mencionar que escrevi já sem ter os livros em mão. Os dois livros da Asabuki que li até agora eu peguei na biblioteca central de Hirakata, onde já vi pelo menos mais dois livros dela que espero ler ainda este ano. No caso de Kikotowa, a leitura em si foi um pouco lenta, afetada pelas dificuldades lingüísticas e pelo ritmo das rememorações, e foram mais os temas da memória e do tempo que me marcaram inicialmente. Praticamente tudo o que escrevi aqui me ocorreu enquanto escrevia, e não teria me dado conta dessas transposições que comentei se não fosse a parede que é este blog. Claro que notei a fluidez dos temas, evidente nas reflexões sobre a natureza do tempo e da memória, notei que havia algo relacionado a classe, a dinheiro mesmo, no retrato das famílias das protagonistas, mas só fui ligando os pontos enquanto escrevia. Fazia tempo que não escrevia algo assim, em que as idéias se juntavam e proliferavam em direções inesperadas. Dá uma sensação agradável, apesar das incertezas e dos pontos deixados em aberto. Sinto que poderia elaborar este texto mais apropriadamente um dia, quem sabe como trabalho mais acadêmico, mas no momento não encontro esse fôlego.]
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